Por Trás das Grades Eternas
O barulho dos cascos dos cavalos enquanto trotavam era o único barulho que Jim conseguia ouvir de dentro da carruagem.
Ali, enquanto seguia para sua sentença, não podia ver absolutamente nada. Sua cabeça estava completamente envolto por um saco de batatas velho e fedorento. Ele tinha certeza que outros condenados já haviam utilizado esse mesmo saco de batatas na cabeça, pois ele conseguia sentir o cheiro de cabelo sujo, suor e sangue.
James "Jim" Donovan não era um bom pai, nem um bom marido. Não era um bom amigo, também não era bom no que fazia. Não era bom em nada, com absolutamente nada. E tudo isso ecoava em sua cabeça… Por esse motivo, ele não se importava com nada que estava acontecendo com ele. Talvez o seu destino seria uma dádiva.
A carruagem parou e os cavalos relincharam. Haviam chegado.
O desceram ainda com suas mãos amarradas para trás e retiraram o fétido saco de batatas de sua cabeça, revelando sua cabeleira suja e maltratada. Aliás, tudo nele era maltratado. O fundo dos seus olhos já não eram tão mais brancos, e o castanho escuro de sua retina parecia negro o tempo todo. Seu nariz já havia sido quebrado algumas vezes por conta de brigas nas tavernas. Seus dentes estavam quebrados, e os que restaram, estavam amarelados. Ele respirou fundo e sentiu um mal cheiro. Não sabia se vinha diretamente dele ou do saco que acabaram de tirar de sua cabeça.
O policial abriu a única porta que havia naquela cadeia. O lugar era minúsculo e nele havia apenas duas celas, uma defronte para a outra.
Entrando em sua cela, ele reparou que o único conforto que ele teria era uma cama de palha no chão. Para suas necessidades, um buraco no chão e era isso que a cela continha. Nada além dele, um colchão velho e um buraco que também era tão fétido quanto o saco de batatas. Ele teve certeza de que os quartos em que dormia nas tavernas eram melhores, maiores e mais confortáveis do que aquilo onde ele estava. Se é que dava para chamar de conforto. E para seu desespero, havia apenas uma pequena janela na porta da cela, onde os policiais iriam se comunicar com ele. Talvez, ele não veria mais o sol nascer da mesma forma. Se lembrou que acordar no meio da praça, bêbado e sem saber onde estava pela manhã, era terrivelmente mais atraente do que aquele cubículo que se denominava de cela.
O policial trancou a porta, e pela minúscula janela, disse:
- Aqui você irá ficar por uns dias. Sua condenação é breve. Mas não faça com que eu me convença de que sua condenação deverá ser longa. Não estou nem um pouco disposto em te levar para outra cadeia. O café da manhã é servido todos os dias as 8h. Pão e água, se quiser. Passar bem.
Jim ouviu o policial se afastar e fechar a porta de entrada da singela prisão.
Ele se sentou no chão e ficou se questionando o motivo de estar lá. Se lembrou.
Estava bêbado na noite anterior e roubou pão e cerveja do estabelecimento que ainda estava aberto tarde da noite. Ele vivia sozinho, morava sozinho.
Não tinha com quem conversar, com quem compartilhar seus momentos. O que restava era beber e esquecer de absolutamente tudo. E isso trazia consequências irreversíveis.
Enquanto estava sentado, olhou para seus pés. Seu sapato estava coberto de terra, sujeira de outros dias, e talvez até um pouco de estrume. Sentiu seu cheiro. Fazia alguns dias que não tomava banho.
Mas ninguém se importava com ele. Por qual motivo ele também iria se importar?
Se lembrou que não poderia saber mais as horas, seu relógio - o único item de valor que ele tinha consigo - havia sido levado pelos policiais após ele ter sido pego roubando. Provavelmente pegaram quando socaram seu rosto.
Ele se lembrou disso e passou a língua entre os dentes que ainda restavam. Havia um buraco em um dos dentes que existiam. Estava aberto. Seu dente havia sido quebrado na porradaria enquanto os policiais tentavam segurá-lo. Na hora ele não sentiu nenhum tipo de dor, nem do soco e nem do dente quebrado. Agora também não sentia nada.
Nenhum tipo de sentimento. Raiva, ódio, arrependimento, tristeza.
Apenas fome, muita fome. Seu corpo doía por não ter nenhum tipo de alimentação. Faziam alguns dias que sua dieta era regada a cerveja barata.
Pensou em seus filhos. Não os via fazia algum tempo. A mãe pegou as crianças e levou para outro lugar, na qual não foi informado a ele. Não se lembrava ao menos como era o rosto das crianças. Também se esqueceu da idade que cada um tinha.
Se levantou, olhou pela janela que havia na porta daquela pequena cela. Estava escurecendo. E enquanto estava absorto em seus pensamentos, seus olhos vidrados não conseguia enxergar além da outra janela que dava para a porta da frente.
Sua cama rangeu como se alguém estivesse se deitando nela.
Jim olhou para trás com calma. Talvez poderia ser um rato. Grande, mas um rato.
Não era um rato.
Era alguém.
Um homem estava deitado na cama com os pés entrelaçados. Colocou os braços atrás da cabeça, como se estivesse extremamente confortável naquela posição. O homem não se importou com os olhos arregalados de Jim.
- O que faz aqui? - disse Jim. Fazia tantas horas que não pronunciava qualquer palavra, que sua voz saiu extremamente rouca e baixa. - Não há lugar para dois aqui - limpou o pigarro da garganta e continuou - você poderia ir para a outra cela. Aquela ali da frente, está vazia. Eu que irei dormir nessa cama. SAIA DAÍ.
O outro homem apenas movimentou os olhos e encontrou os olhos de Jim enfurecido.
A verdade é que Jim não gostava de compartilhar nada aque era seu, mesmo que aquela cama não fosse sua. Sempre foi um pouco egoísta de natureza.
- Essa cama é nossa. Fique tranquilo.
Assim que o homem misterioso falou, Jim sentiu sua espinha se arrepiar por inteiro. Seu coração começou a bater em uma velocidade absurda. Sua boca secou por completo.
Ele prestou atenção na vestimenta do rapaz. Era um rapaz, visivelmente muito mais novo do que ele.
Suas roupas não condiziam mais com a época em que estavam. A manga bufante com seda amarelada pelo tempo refletiam em uma vestimenta de pelo menos 100 anos antes. Ou mais até.
Porém, como Jim não era próximo de pessoas ricas e muito menos frequentavam ambientes com essas pessoas, ele considerou que pessoas com poder aquisitivo se vestissem daquela maneira ainda.
Seu coração acalmou quando pensou nessa possibilidade.
- Não tenha medo - disse o homem misterioso - Eu não mordo. Juro. Nem bato na cara das pessoas. Muito menos julgo por um crime de quem estava com fome e queria se manter bêbado.
O homem falou isso sem nem sequer mover um músculo. Jim voltou a ter arrepios na espinha, e começou a se espalhar pelo seu corpo. Congelou dos pés à cabeça.
Como aquele homem poderia saber o que havia acontecido com ele?
Alguns minutos se passaram. Parecia uma eternidade para Jim.
O homem mal se movia na cama. Estava completamente relaxado e confortável.
- Muito bem, cansei disso - vociferou Jim - Poderia, ao menos, dizer quem é? Entra aqui sem ao menos uma permissão, ou qualquer tipo de educação. Chegou e já foi se deitando. Quem raios é você?
O homem sorriu de forma repulsante e se sentou na cama com a maior facilidade.
- E quem é você para falar de educação, senhor Donovan? - o homem se levantou e ficou testa a testa com Jim - Quem é você para me dar lições de como devo me comportar?
Jim estremeceu. Como diabos aquele homem AINDA sabia de tudo sobre ele?
- QUEM-É-VOCÊ? - Jim empurrou o homem na cama. O homem caiu sentado, ainda sorrindo.
- Você mal consegue entender. Você mal tenta. - o sorriso do homem se transformou em um semblante sério e de extremo horror - É por isso que você teve a vida miserável que teve. Por isso que nunca houve amor e nunca, ninguém, teve compaixão por você. Você é ignorante, Jim. Você é completamente arrogante e só pensa em você. Você é patético, James.
Neste momento, Jim percebeu que ninguém havia falado assim com ele antes. E quando haviam tentado, ele batia na pessoa sem ao menos pensar em consequências. Batia e ia embora.
Nunca tinha acontecido nada com ele sobre isso. Ele era um homem imbatível e ninguém se atrevia a falar com ele. Muito menos querer briga com ele. Pode acreditar, a outra pessoa levaria a pior.
Jim sentiu sua cabeça girar. Seu estômago revirou tantas vezes.. vomitou. Estava extremamente enjoado e confuso. Sentiu seu corpo ficar leve. Caiu no chão e entrou em sono profundo.
Acordou com o barulho da porta de sua cela sendo aberta pelo policial. Tentou se levantar, estava completamente sujo do vômito da noite anterior. Se levantou do chão com dificuldade, olhou em volta. Estava sozinho.
O policial entrou em sua cela com um pedaço pequeno de pão e uma caneca com água. Jim estava eufórico.
- Cadê ele? - questionou ao policial.
- Ele quem, seu maluco? Não tem absolutamente ninguém nessa cadeia imunda a não ser você.
- Tem sim! Tem sim! - repetiu Jim, tentando andar de um lado pro outro, coçando a cabeça.
- Não tem. Pegue aqui sua refeição logo.
Jim não pensou em outra coisa a não ser fugir daquele lugar. A porta ainda estava aberta e o policial estava aguardando para que ele pegasse a sua “refeição”, se assim poderia dizer.
Tentou passar por debaixo das pernas do policial, mas foi em vão.
A água que estava na caneca foi completamente derramada. O pão caiu no chão.
Em segundos, os ratos que estavam andando por ali se fizeram de donos do pão. Jim iria continuar com fome.
O policial empurrou Jim com força. Não precisava de muito, ele estava fraco. Qualquer empurrão era o suficiente. O policial trancou a porta da cela.
- ME TIRA DAQUIIIIIII - gritou Jim. Ele estava desesperado e começou a chorar.
A verdade é que Jim nunca chorou. Nem mesmo quando seus filhos foram embora com a mãe. Nem mesmo quando seu filho recém nascido havia nascido morto. Nunca chorou.
Mas naquele momento, ele sentia que seu desespero era maior do que qualquer outra coisa que havia acontecido com ele.
- Você fica totalmente ridículo chorando assim, sabia? - O homem misterioso apareceu novamente.
Jim se levantou, sentiu seu corpo ficar mole, mas se manteve de pé.
- Você novamente? Vai embora, eu já pedi!
- Não irei. Aqui também é minha cela. Minha e de mais alguns que passaram por aqui. Ou você acha que só você passou por aqui? Você considera mesmo que sua pena é mínima e logo você irá sair? Ninguém quer você de volta na cidade. Você só causou caos e tristeza. Assim como aconteceu comigo, irá acontecer com você também. E ficaremos por aqui, como tantos outros também ficam. É divertido, eu prometo.
- Você está aqui há muito tempo? - disse Jim, com medo, mas por fim começando a entender o que estava acontecendo.
- Ah sim… Não sei por quanto tempo. Mas muito. Percebo a passagem do tempo, mas não tenho a noção de dias, meses e anos. Você vai se acostumar.
Jim caiu sentado no chão. Haviam mentido para ele. Informaram que seria uma pena pequena, provavelmente ele iria sair dali em alguns dias. Ele sentiu uma tristeza que nunca havia sentido antes.
Jim sentiu sua boca pulsar e sangue sair de sua boca. O buraco do dente que estava aberto saia sangue lentamente. O pulso do seu coração estava fraco.
- É assim que começa, Jim - disse o homem misterioso, com sua voz baixa e calma - Você não tem mais forças para continuar. Apenas aceite.
O homem misterioso estava de pé na frente dele. Sua voz começou a soar etérea e aguda.
- Venha conosco, Jim. Venha presenciar mais desses homens medíocres e sem expectativa de vida que acham que são alguém. Assim como eu fui. Assim como tantos outros foram. Assim como você, meu caro amigo, também foi. Venha e me abraçe para a eternidade.
Jim ainda olhava para o homem.
Ele sentiu seu corpo caindo de lado.
Foi respirando fundo.
Não sentia mais gosto de sangue na boca. Não sentia mais seu corpo dolorido pela fome. Não sentia o aroma fétido que aquela cela já proporcionava.
Ele se levantou e abraçou o homem misterioso. Um abraço gelado.
Olhou para trás e viu um corpo caído no chão. O corpo de um homem que poderia ter tido muitas coisas na vida, felicidade e amor com sua família e seus amigos. Que poderia ensinar seus filhos a serem boas pessoas.
Mas viu um homem sujo e feio, entregue à sorte de sua eternidade dentro daquela cela.
Lá fora, no teto da prisão, um corvo grunhiu anunciando que mais um morador daquela cadeia havia chegado.
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Ilustração: Copilot IA/Lika Terssetti